Fonte: Estado de Minas Online
ONGs que trabalham pela melhoria das cidades e fazem a fiscalização do poder público municipal ganham espaço na cena política
Elas não são de muito barulho. Não disputam campanha eleitoral, nem fazem propaganda de seus atos. Boa parte de seus membros são voluntários, ou seja, não recebem pelo que fazem. Mas incomodam, porque contestam, reivindicam, propõem. Espalhadas por todo o país, constituem redes cuja principal característica é a troca de experiências e informações. Não há um núcleo de poder que toma decisões. O compartilhamento é a regra. O cenário de trabalho é o município. O objetivo é a melhoria da qualidade de vida do cidadão e a fiscalização das autoridades constituídas, também no nível municipal.
No Brasil, as organizações não governamentais (ONGs) que atuam nessa área chegam a algumas centenas. Elas estão distribuídas por várias redes. Uma rede é a da Associação dos Amigos de Ribeirão Bonito (Amarribo Brasil), uma ONG fundada em 1999, em Ribeirão Bonito, no interior de São Paulo, cujo trabalho de combate à corrupção na prefeitura deu tão certo que acabou servindo como modelo para outros municípios. Hoje, a rede da Amarribo é composta por cerca de 200 ONGs espalhadas por todo o país. Aproximadamente a metade dessas organizações estão nos estados de São Paulo e Minas Gerais. No início do mês, a Amarribo foi uma das instituições que ajudaram a realizar a 15ª Conferência Internacional Anticorrupção, em Brasília. Outra é a Rede Social Brasileira por Cidades Justas e Sustentáveis, um coletivo de ONGs e movimentos sociais cujo produto mais visível é o Programa Cidades Sustentáveis, ao qual podem aderir tanto empresas como o poder público.
A Amarribo e a Rede Social Brasileira atuam em áreas diferentes, embora em algumas ocasiões façam trabalhos em parceria. O foco da Amarribo é o combate à corrupção no âmbito municipal. Já o foco da Rede Social Brasileira é o acompanhamento da execução orçamentária, também no nível municipal. Uma das ferramentas desse trabalho são os indicadores de sustentabilidade. São mais de 300 indicadores, distribuídos por 14 eixos. Da Amarribo, as ONGs parceiras recebem assessoria técnica e um guia com o passo a passo para que possam detectar e combater a corrupção no âmbito municipal. O guia apresenta vários exemplos práticos de ações que deram certo.
Duas ONGs parceiras da Amarribo que deram certo estão em Minas. Uma é a Associação dos Amigos de Januária (Asajan), que, entre 2004 e 2008, conseguiu afastar sete prefeitos do município. Todos pela mesma razão: mau uso dos recursos públicos. Outra ONG é a Associação Diamantina Viva (Adiv), que contesta o edital lançado pela prefeitura para contratar uma empresa que vai gerenciar a vesperata, principal evento cultural do município. A Adiv considera que a contratação da empresa equivale à privatização da vesperata.
O movimento Nossa Brasília faz parte da Rede Social Brasileira por Cidades Justas e Sustentáveis. Entre suas prioridades de hoje está a busca de uma alternativa de renda para as famílias da Vila Estrutural, um aglomerado de barracos com ruas estreitas e sem asfalto, e carência de escolas, hospitais e saneamento básico. No local vivem 35 mil pessoas, que tiram seu sustento do lixão de Brasília. Até 2014, o lixão deve ser extinto, como prevê a lei que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos. O trabalho do Nossa Brasília visa preparar os moradores da Vila Estrutural para essa nova realidade.
Na capital mineira, o Nossa BH contabiliza vitórias. Uma delas foi o arquivamento de projeto de lei apresentado na Câmara Municipal que retirava poder deliberativo dos conselhos que existem no âmbito da prefeitura. Desses conselhos participam representantes do Executivo, Câmara e também da sociedade civil. O Conselho Municipal do Meio Ambiente do Município de Belo Horizonte (Comam) e o Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte são alguns desses organismos. O Comam emite licenças para empreendimentos potencialmente poluidores se instalarem na capital. Entre as funções do Conselho do Patrimônio Cultural está a aprovação do tombamento de imóveis de importância histórica. Por pressão de movimentos como o Nossa BH, o projeto foi arquivado.
O Nossa BH é um grupo formado por aproximadamente 30 voluntários. Adriana Torres faz parte desse grupo. Ela é formada em administração e, no movimento, trabalha com o acompanhamento da execução orçamentária. A referência são os indicadores, por meio dos quais é possível ter uma visão crítica da forma como os recursos do município são aplicados. "Com esses dados, o debate fica mais qualificado. Temos condições de chegar a uma audiência pública do orçamento e questionar por que está sendo oferecido um número 'x' de vagas em uma escola pública se o indicador mostra que a necessidade da região é muito maior. Com os números, nós trabalhamos com muito mais do que o ‘achismo’", explica Adriana Torres.
Ela afirma que o Nossa BH não é um movimento de oposição à administração municipal. Criticar, segundo Adriana, faz parte. Porém, mais importante do que isso é propor alternativas para a cidade e, ao mesmo tempo, fazer com que os gestores se comprometam com um programa de metas. "Nossa ideia não é ser um movimento de combate. Criticar faz parte, mas é muito mais importante propor." Como exemplo de cidade que adotou uma gestão participativa e mudou sua face, ela cita Bogotá, capital da Colômbia. Lá, segundo Adriana, o modelo participativo deu tão certo que a própria população se propôs a pagar um adicional do correspondente ao nosso IPTU para realizar obras que não estavam previstas, mas eram necessárias. "Seria fantástico se isso ocorresse aqui também." Na capital federal, o Nossa Brasília caminha na mesma direção do Nossa BH. Para isso, já montou um grupo de trabalho que está começando a discutir a definição dos indicadores.
A informação é a matéria-prima do trabalho de todas estas ONGs – das que esmiúçam os orçamentos municipais em busca de uma maior eficiência na aplicação dos recursos às que buscam conter a corrupção. Segundo o advogado Fábio Henrique Carvalho Oliva, um dos coordenadores da Asajan, sem a definição de métodos claros de trabalho e sistematização das informações coletadas, a entidade não teria atingido seus objetivos. Ele conta que, em 2004, recebeu de uma cabeleireira de Januária uma caixa com vários documentos que, sem sucesso, ela havia encaminhado à Polícia Federal e ao Ministério Público com denúncias de irregularidades na prefeitura.
Porém, como não havia uma sistematização desses documentos, a denúncia não foi adiante. Segundo Fábio Oliva, com a orientação recebida da Amarribo, foi possível desenvolver uma metodologia de atuação. Assim, em vez de trabalhar todas as denúncias ao mesmo tempo, foram escolhidas algumas. Para estas, foi feito o recolhimento de provas e definidos os nomes das pessoas que iriam testemunhar. Desta forma, as denúncias chegaram à Justiça e os responsáveis foram todos afastados.
Ao profissionalismo no trato com a informação qualificada, Lizete Verillo, diretora de Combate à Corrupção da Amarribo, aponta o apartidarismo como condição para o sucesso desse trabalho. Com ela concorda Fábio Oliva. Ele conta que, quando a Asajan surgiu, houve uma certa desconfiança porque se acreditava que as pessoas que estavam na direção da entidade tinham interesses políticos ou pretendiam disputar eleição mais à frente. "A gente convivia com suspeitas e dúvidas de tudo quanto era lado", afirma Oliva. Hoje, segundo ele, essas dúvidas não existem mais porque a população se convenceu de que não havia outros interesses por trás do trabalho que não fosse o de buscar o uso correto dos recursos públicos. "Nosso papel é o da formiguinha que, todo dia, leva uma folha para seu abrigo até que todos se conscientizem da importância de uma ação conjunta", define Francisco Emiliano Pimenta Nominato, da Adiv.
A ação da formiguinha é importante. Porém, o esforço que movimentos como a Amarribo e a Rede Brasileira por Cidades Justas e Sustentáveis teriam que fazer seria muito maior não fosse a entrada em vigor de duas leis que, de certa forma, mudaram bastante o cenário no qual estes movimentos trabalham.
A primeira foi a Lei da Ficha Limpa, que barra a candidatura de políticos condenados pela Justiça; a segunda é a Lei de Acesso à Informação, que inverte o conceito de informação sigilosa. Com a lei, a exceção passou a ser a regra. A partir de agora, toda informação é de livre acesso a qualquer pessoa, a não ser que exista alguma restrição prévia à sua divulgação. A esses dois instrumentos, a Amarribo acrescenta o Portal da Transparência, um endereço na internet no qual o governo federal disponibiliza para a população todos os seus gastos. "Tudo isso representou um grande avanço para a democracia", afirma Lizete Verillo.
A história da evolução da democracia no mundo começou na Grécia antiga, com a democracia participativa, na qual todas as decisões eram tomadas por todos os cidadãos. Hoje, nas democracias do mundo moderno, predomina a democracia representativa, na qual a representação se dá por meio de seus representantes legais – no Brasil, prefeitos, vereadores, deputados, senadores, governadores e presidente da República – eleitos a cada quatro anos. Nesse sistema ocorre também a separação de poderes preconizada pelo filósofo francês Montesquieu. Segundo sua teoria, cabe ao Poder Legislativo propor e aprovar as leis, ao Executivo a tarefa de executá-las e ao Judiciário a missão de fiscalizar o seu cumprimento e punir quem as desrespeite.
Nesse cenário, que papel estaria reservado às ONGs, que não estão no âmbito do Executivo, nem do Legislativo nem do Judiciário, mas dispõem do poder de fazer com que a realidade tome novos rumos? Para Adriana Torres, as ONGs fazem uma ponte entre os dois modelos, contribuindo para o aprimoramento da democracia representativa. "Nós fazemos uma mescla do presente com o futuro." Segundo sua visão, o modelo da democracia participativa puro é inexequível nos dias atuais, devido, entre outras coisas, ao excesso de população e ao tamanho das cidades. Da mesma forma, ela também considera a democracia representativa um modelo imperfeito porque muitas vezes exclui grupos minoritários das decisões. Nesse contexto é que, a seu ver, aparece o trabalho das ONGs como uma instância capaz de tornar mais eficaz a atuação dos representantes eleitos pela população para elaborar as leis e governar.
"Nós chancelamos a democracia tradicional e damos a ela maior credibilidade", afirma Adriana Torres. "Nosso lugar é o da participação qualificada e do controle social", define Cleomar Manhas, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), uma ONG de Brasília na qual o movimento Nossa Brasília está abrigado.
Para o cientista político Antônio Flávio Testa, da Universidade de Brasília (UnB), as ONGs que fazem o acompanhamento da ação do poder público constituem um novo espaço que tende a se ampliar porque os partidos políticos estão muito fragilizados. Este, segundo ele, é um espaço que começou a ser delineado no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, mas sobre o qual a discussão não avançou muito no governo Lula.
A grande vantagem, segundo Antônio Testa, é que muitas dessas ONGs não dependem do repasse de recursos públicos. O lado negativo dessa situação é que, por não serem cooptáveis, elas costumam ter sérios problemas de sobrevivência. Testa, que coordenou na UnB a primeira pós-graduação em política e gestão de ONGs do país, acredita que, ao longo do atual século, as ONGs constituirão um espaço de poder cada vez maior no cenário político.
Para Francisco Nominato, da Adiv, as ONGs são importantes para que o cidadão tenha uma voz mais ativa e aumente seu poder de pressão e decisão. Ele é otimista em relação ao futuro. "Grandes mudanças estão vindo com a pressão popular." Para ele, no curto tempo de 10 a 20 anos, não haverá, no Brasil, espaço para práticas antigas de mau uso dos recursos públicos. Francisco Oliva não chega a ser tão otimista. Para ele, acabar com a corrupção no Brasil é uma utopia, porque a própria população em muitos casos também age de forma incorreta, por exemplo, quando pede ao administrador público gasolina para exercer uma atividade particular e este a fornece.
"Temos consciência de que não vamos acabar com a corrupção. Mas temos a certeza de que vamos reduzi-la muito", afirma Fábio Oliva, que também se reporta às formiguinhas para definir o sentido do trabalho que faz. "A gente não pode parar nunca." Ele afirma que algumas vezes fica meio desanimado, tamanho é o desafio que tem pela frente. Porém, quando alguma vitória é alcançada, é como se o tanque de combustível fosse reabastecido. "Dá um gás, renova a nossa esperança."