O Ministério Público tem o dever de adotar medidas frente à vulnerabilidade da saúde pública local em decorrência da não observância das obrigações legais do ente municipal. Portanto, razoável que se faça tentativas no sentido de alcançar um consenso junto ao Poder Executivo, que pode também propor suas sugestões para se adequar aos protocolos legais, sempre deixando visível que o objetivo do Ministério Público é o mesmo da Secretaria Municipal da Saúde: proteger a população e melhorar as condições da saúde pública local.
Para que o Ministério Público possa exigir a adequação da legislação pertinente, necessária a análise da situação dos Municípios frente ao Sistema Único de Saúde:
A saúde vem inscrita no artigo 6º da Constituição Brasileira de 1988 como sendo um direito social que, nos termos do art. 196 da mesma Constituição, “é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas econômicas e sociais”. A atenção a esse direito se faz por meio de uma rede regionalizada e hierarquizada que se constitui num sistema único, organizado com descentralização e direção única em cada esfera de governo, atendimento integral com prioridade para as ações preventivas e participação da comunidade (art. 198, CF 1988).
Dessa assertiva, destaca-se a possibilidade de o Ministério Público exigir que o Município dê prioridade a ações preventivas, conforme determinado pela Constituição Federal, tendo como direcionamento a Portaria 648/GM de 28 de março de 2006 que estabelece parâmetros para a implantação e ampliação do Programa Saúde da Família, que constitui importante ação preventiva para a saúde da comunidade.
O Sistema Único de Saúde – SUS foi organizado a partir da Lei Orgânica da Saúde – LOS, isto é a Lei Federal 8.080, de 19 de setembro de 1990, que estabeleceu em seu art. 2º ser a saúde “um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu exercício”. Segundo o art. 30, inciso VII, da Constituição, e artigo 18 da Lei 8.080/90, é no Município que se devem organizar as ações e serviços de saúde, sendo responsabilidade deste a execução dessas ações e serviços públicos de saúde, com colaboração técnica e financeira da União e do respectivo Estado, cabendo a este promover a descentralização dos serviços para o Município (Lei 8.080/90, art. 17, inciso I).
Portanto, a Lei 8.080/90 estabelece as regras e as condições para o funcionamento do Sistema Único de Saúde em todo o território nacional, disciplinando a forma de atuação de cada esfera de governo (nacional, regional ou local) bem como a articulação das ações destas esferas entre si e com a iniciativa privada, que atua de forma complementar ao sistema público de saúde.
As competências e atribuições de cada esfera de governo são explicitadas pelos artigos 15 a 19 da Lei Orgânica da Saúde. Pode-se perceber a ênfase à descentralização que deve ser observada pela União, em relação aos Estados e Municípios, nos termos do inciso XV do art. 16, e desses com relação a estes, nos termos do inciso I do art. 17. Por último, reza o art. 18, inciso I, da mesma lei, que ao município cabe planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e serviços de saúde de todo o gênero levadas a efeito em seu território, gerindo e executando os serviços públicos de saúde neste mesmo local. Mais uma vez, se coloca que a responsabilidade pela execução dos serviços públicos de saúde, ou seja, quem presta efetivamente os serviços de saúde ao cidadão é o Município. Aliás, o controle dos prestadores de serviços de saúde e da instalação desses serviços em seu território é do Município (arts. 15, XI, 18, I e 36 da LOS). A vigilância epidemiológica, ou seja o conhecimento, a detecção e prevenção de fatores determinantes e condicionantes da saúde individual e coletiva, para que possa planejar e adotar medidas de prevenção e controle de doenças também é dever do Município (LOS, art. 18, inciso IV) .
Como regulamentação dos princípios e diretrizes das Leis 8.080/90 foram editadas, dentre outras, pelo Ministro da Saúde, as Normas Operacionais Básicas do SUS – NOB -, as Normas Operacionais de Assistência à Saúde – NOAS e a Política Nacional de Atenção Básica (Portaria 648/GM de 28 de março de 2006).
A NOB/96 constituiu-se em importante passo na municipalização do atendimento pelo SUS, pois busca promover e consolidar o pleno exercício, por parte do poder público municipal, da função de Gestor da atenção à saúde de seus munícipes. A NOB foi complementada pela Norma Operacional de Assistência à Saúde – NOAS/2002 aprovada e posta em vigor pela Portaria 373 de 27 de fevereiro de 2002, que pretende, principalmente, estabelecer o processo de regionalização como estratégia de hierarquização dos serviços de saúde e de busca de maior eqüidade.
As ações e serviços de saúde do Sistema Único de Saúde são classificadas como de Atenção Básica, de Média Complexidade e de Alta Complexidade. Nos termos da Portaria do Ministério da Saúde 648/2006:
A atenção básica caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individu-al e coletivo, que abrangem a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a manutenção da saúde. É desenvolvida por meio do exercício de práticas gerenciais e sanitárias, democráticas e participativas, sob forma de trabalho em equipe, e dirigidas a populações de territórios bem delimitados, pelas quais assume a responsabilidade sanitária, considerando a di-namicidade existente no território em que vivem essas populações. Utiliza tecnologias de baixa densidade que devem resolver os problemas de saúde de maior freqüência e relevância em seu território. É o contato preferencial dos usuários com os sistemas de saúde.
Orienta-se pelos prin-cípios da universalidade, da acessibilidade e da coordenação do cuidado, do vínculo e da continuidade, da integralidade, da responsabilização, da humanização, da equidade e da participação social (...). A atenção básica tem a Saúde da Família como estratégia prioritária para sua organiza-ção de acordo com os preceitos do Sistema Único de Saúde.
Por outro lado, a Secretaria de Atenção à Saúde (SAS) do Ministério da Saúde (MS) define média e alta complexidade em saúde, em seu site na internet (http://portal.saude.gov.br/portal/sas/mac/default.cfm), conforme se segue.
A média complexidade ambulatorial é composta por ações e serviços que visam atender aos principais problemas e agravos de saúde da população, cuja complexidade da assistência na prática clínica demande a disponibilidade de profissionais especializados e a utilização de recursos tecnológicos para o apoio diagnóstico e tratamento.
No mesmo material de apoio, encontramos a seguinte definição de alta complexidade:
Conjunto de procedimentos que, no contexto do SUS, envolve alta tecnologia e alto custo, objetivando propiciar à população acesso a serviços qualificados, integrando-os aos demais níveis de atenção à saúde (atenção básica e de média complexidade).
Dentro do Sistema Único de Saúde, compete aos Municípios o custeio da atenção básica de saúde, nos termos da NOB-SUS 01-96, da Portaria 648/GM-2006 e do artigo 30, inciso VII, da Constituição Federal, incluindo suas respectivas urgências, abrangendo o controle de tuberculose, a eliminação da hanseníase, o controle de hipertensão, o controle de diabetes melittus, as ações de saúde bucal, as ações de saúde da criança e as ações de saúde da mulher, constantes do anexo I da Norma Operacional da Assistência à Saúde – NOAS SUS 01/2002 .
Assim, dentro das atribuições dos entes federados na saúde pública, todos os municípios são responsáveis pela atenção básica de saúde, que abrange as responsabilidades e ações estratégicas mínimas de atenção básica constantes do anexo I da NOAS – SUS 02.
Cada município é responsável por todo o tipo de atendimento de que necessita seu cidadão e para tanto conta sim com referências de outros municípios em atendimentos de média e alta complexidade dependendo do seu porte estrutural. Mas, a atenção básica não é objeto de referência devendo ser prestada diretamente pelo Município aos seus cidadãos.
Além disso, o Município deve disponibilizar aos cidadãos o atendimento de saúde 24h, nos termos do disposto na NOAS-SUS 02 (anexo 3A – atendimento médico de urgência com observação até 24 horas), atendendo as quatro áreas de saúde e acompanhamento ambulatorial em saúde mental, conforme determinação do item 4.2, (1), do Plano Diretor de Regionalização da Saúde - PDR - 2002. Portanto, as unidades de saúde devem prestar o seu atendimento 24h por dia, seja de forma direta ou com a complementação da iniciativa privada.
Os artigos 199, §1º, da CF e 4º, §2º, da Lei 8.080/90 admitem a complementação privada da saúde pública, de forma que o Município contrata um estabelecimento privado para rematar o atendimento de saúde de seus cidadãos, sempre respeitando os ditames legais, que vedam a terceirização total da atividade fim do Estado à iniciativa privada. Importante considerar que essa complementação privada para a saúde pública é somente permitida quando utilizada toda a capacidade instalada dos serviços públicos de saúde, comprovada e justificada a necessidade de complementar sua rede e, ainda, se houver impossibilidade de ampliação dos serviços públicos, nos termos da Portaria 3.277/GM, de 22 de dezembro de 2006.
Por isso, diante da dimensão de alguns municípios, torna-se aceitável a alegação de que o custo-benefício da disponibilização direta 24 horas de atendimento de atenção básica não é bom financeiramente para o município que tem que arcar com uma estrutura durante todo o período noturno, por exemplo, tendo mínima demanda. Nesses casos é compreensível que o Município busque uma complementação para cobrir o seu atendimento 24 horas, caso lhe seja menos oneroso que a prestação direta do plantão.
Essa complementação, que em geral se dá somente nos períodos noturnos, deve ser remunerada pelo Município ao prestador de serviço, visto que é a sua responsabilidade que, por questões de custo-benefício, está sendo parcialmente repassada a outrem. Daí a obrigação de o Município buscar solução para a situação de seus munícipes, que não podem ficar sem atendimento de saúde nos períodos noturnos e finais de semana. Há de se buscar, considerando, é claro, as condições financeiras da Secretaria Municipal da Saúde, uma solução para a cobertura do período em que o Posto de Saúde Municipal fica sem atendimento.
Essa obrigação de cada município custear o seu atendimento de plantão 24 horas chancela todo o Sistema Único de Saúde, na medida em que cada Município deve acompanhar o número e tipos de atendimentos de seus cidadãos para buscar alternativas administrativas que enfrentem as dificuldades detectadas. Que interesse teria um Município em buscar medidas preventivas, por exemplo, para a redução das necessidades de atendimento na atenção básica se não arcasse com seus custos? A gestão do sistema, que é responsabilidade municipal, ficaria absolutamente comprometida.
Logo, todo e qualquer município brasileiro é responsável pela gestão integral do atendimento de saúde dos seus munícipes, tanto em caso de alta complexidade, média complexidade e atenção básica.
A importância da atenção básica é consagrada na regulamentação da saúde pública brasileira, na medida em que a prioridade para as atividades preventivas encontra respaldo na própria Constituição Federal (art. 198, II). Não é por outro motivo que a Gestão Estratégica do Ministério Público – GEMP instituiu a Atenção Básica de Saúde (prevenção) e o Programa de Planejamento Familiar como metas prioritárias e institucionais dos Direitos Humanos do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul.
Fernanda Machado de Oliveira,
Assessora Jurídica do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos.
Mauro Luís Silva de Souza,
Promotor de Justiça, Coordenador do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos.
Fernanda Machado de Oliveira,
Assessora Jurídica do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos.
Mauro Luís Silva de Souza,
Promotor de Justiça, Coordenador do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos.
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